Review de ‘Mid-Western Assassin’, 6° episódio de ‘Cult’

Entre 1966 e 2017, 948 pessoas foram mortas em tiroteios nos Estados Unidos. A estatística que engloba cinquenta anos de massacres foi divulgada pelo jornal Washington Post no último dia 5 de outubro. Ao todo, foram 131 tragédias, contando apenas casos em que mais de quatro indivíduos foram mortos por um atirador ou dois. Uma média de oito pessoas foram mortas em cada ataque.

Os tiroteios em massa causam um temor enraizado na sociedade norte-americana. Suas vítimas são pessoas que foram a shows (como os 58 mortos durante ataque em Las Vegas no último 1° de outubro), à escolas, à universidades, a supermercados, a passeios nas ruas ou a eventos políticos. As notícias sobre esses tiros sinalizam como cenas do cotidiano são interrompidas e transformadas em situações de pânico. A segurança parece mais frágil quando a nação é atingida por um tiroteio.

O sexto episódio de “Cult” é aberto por um massacre. A FX anunciou anteriormente que a sequência seria editada em respeito ao público afetado pelo trauma de Las Vegas. Embora na cena inicial modificada, os momentos em que as vítimas são baleadas sejam menos explícitos, ainda é possível perceber a atmosfera caótica, o atordoamento. Os jogos das câmeras e a movimentação de figurantes cria uma desorientação em quem assiste.

As pessoas correm sem rumo enquanto se escuta os tiros. A bandeira dos Estados Unidos tremula ressaltando que aquela é uma cena norte-americana. O medo gerado pelo massacre é espelhado no rosto de Ivy (Alison Pill, em sua melhor atuação até o momento, principalmente na cena sem edição) que tenta fugir e se esconder. Uma unidade especial da polícia tenta conter o atirador. A câmera revela Ally (Sarah Paulson) com uma arma na mão, para o espanto do espectador.

ANTECEDENTES

O que levou ao massacre? O episódio “Mid-Western Assassin” (“Assassina do Centro-Oeste“) volta algumas horas no passado para revelar os antecedentes, mais precisamente na noite em que Meadow (Leslie Grossman) pediu ajuda a Ally contando que todos a seu redor são membros de um culto. Já levada a paranoia por seu problema com fobias e pela perseguição que vem sofrendo, o relato faz com que Ally perca a noção em quem confiar – embora ela seja convencida com uma facilidade grande demais que o psiquiatra Dr. Rudy (Cheyenne Jackson) não faz parte da seita.

Ally descobre que passou os últimos meses desde as eleições traída por vizinhos, pela babá e, principalmente, pela esposa, Ivy. A adrenalina da descoberta misturada com a certeza de que afinal os encontros com palhaços não foram delírios dão força a ela. Ally resgata Meadow, a leva para o restaurante da qual é proprietária e exige ouvir toda a história [Uma pausa para apreciar o alívio cômico da personagem de Leslie Grossman, que aproveita um momento de distração de Ally para furtar uma lata de café].

Meadow revela como Ally e outras pessoas foram selecionadas pelo culto para serem atormentadas por palhaços, caminhões com emissão de falso gás venenoso e até casos verdadeiros de assassinatos. No caso de Ally, até as manifestações contra ela pela morte de Pedro foram realizadas por atores pagos pela seita. O objetivo é gerar uma onda de temor grande o suficiente para o líder, Kai (Evan Peters) conseguir executar uma tomada de poder, prometendo proteção à comunidade fragilizada.

As táticas dele para convencer os integrantes do grupo a aceitarem participar de atos violentos é fazer com que eles se sintam especiais. Com uma pessoa solitária, sexual e amorosamente frustrada e com baixa autoestima como Meadow, as frases e a atenção é o suficiente para ela se sentir apaixonada – e nesse ponto, Kai se assemelha a líderes reais de seita que tiveram envolvimento sexual com seguidores e seguidoras. O problema é que as falas são ensaiadas e repetidas para outros membros. Meadow diz a Ally que tentou se desvincular do grupo por decepção e foi punida com uma tentativa de morte.

A boa retórica de Kai, seu discurso sobre o aumento da violência que se apoia em poucos casos e não em números reais de homicídios ajudam a aumentar sua popularidade. Ele ganha uma adversária: Sally Kefler (Mare Winningham, em uma participação curta, porém memorável). Ela interrompe um de seus discursos no Legislativo de Brookfield Heights para escancarar como o candidato a conselheiro municipal explora medos por situações que não correspondem a uma realidade ampla. “Você não é um conservador, você é um reacionário”, ela diz a Kai.

Ally tenta se voltar a Sally para pedir ajuda para desmascarar o jovem político. Porém, Kai não tolera ser humilhado e nem que surjam obstáculos para sua eleição. A seita invade a casa da rival do candidato, Ally consegue se esconder (porém, não sem dar de cara com Ivy, numa versão de palhaço com máscara de duas cabeças que representam o elefante que simboliza o partido republicano e o burro, mascote dos democratas). Contudo, Sally é assassinada, num ataque que é mascarado de suicídio pela seita.

Ally vai a um comício para revelar quem Kai realmente é e avista Meadow com uma arma. Meadow mata pessoas aleatoriamente, acerta Kai na perna, enfia a arma na boca e atira. Na verdade, seu pedido de ajuda era uma farsa. O plano era criar pânico com o tiroteio para deixar a cidade – e o país – com a impressão de que a violência está realmente em uma intensidade pior e, assim, projetar Kai como a solução para o problema. Ally tenta impedir seu suicídio, toma sua arma e é confundida pelos policias como a assassina.

Na segunda cena do tiroteio, tudo é mais explícito do que na sequência inicial, incluindo a violência. O fato de o corte ser visível apenas no início do episódio nos faz questionar se a tentativa de luto com a edição não foi fracassada. A impressão que fica é de que as alterações só serviram para ocultar um pouco da boa atuação de Pill – o que fica mais perceptível quando o espectador vê a cena sem edição. Talvez a melhor saída seria ter adiado o episódio em respeito aos familiares das vítimas de Las Vegas, porém, agora já foi.

ESTUDO DE PERSONAGEM
O sexto episódio de “Cult” foi o mais intenso – e o melhor, até o momento. É satisfatório ver como uma temporada que começou lenta ganhou uma intensidade digna de um crescendo em uma peça musical. O espectador percebe que a mudança de ritmo calculada tornou a trama envolvente a ponto de ele sentir tensão nos próprios músculos  e ossos durante “Mid-Western Assassin“.

O episódio acerta ao oferecer um estudo de personagem amplo com foco em Meadow. Ela era um dos personagens mais divertidos em uma temporada sombria e ao mesmo tempo um retrato do vazio na vida da classe média americana, que ameniza o próprio sentimento de insignificância com doses de seriados e reality shows.

A alienação de Meadow a tornou uma presa fácil para Kai, que a manipulou com sexo e falsa valorização a ponto de ela se sentir bem em praticar homicídio e, por fim, suicídio, apenas para que ele aumente a popularidade. Além da comicidade, ela se tornou um personagem trágico. Suas frases ácidas e a boa interpretação de Leslie farão falta.

Paralelamente, o episódio também desenvolve Ivy, mostrando como ela é afetada pela própria passivo-agressividade, ao exibir suas cenas do passado, e como não consegue satisfação ao participar das violências do culto. Ivy começou a guardar rancor de Ally desde o momento em que a esposa deu a luz a Oz. Sem dúvida, o egoísmo e o ciúmes poluíram o que deveria ter sido o momento mais feliz na vida do casal. O rancor se tornou ódio que ela canalizou entrando para o culto. Porém Ivy não tem fibra para tolerar a brutalidade dos ataques de Kai e pode se tornar uma ameaça para ele.

COMENTÁRIO SOCIAL
O episódio também tem tons fortes de comentário social. A questão do fácil acesso a armas de fogo levando a tragédias é abordada pela segunda vez na temporada – a primeira foi quando Ally pegou emprestado um revólver no grande arsenal de Harrison (Billy Eichner) e em vez de se proteger, atingiu um inocente. Agora o foco é um tiroteio, e, numa triste coincidência, a cena gravada há semanas, foi exibida poucos dias após os Estados Unidos vivenciarem o maior massacre do tipo de sua história. American Horror Story já tocou nesse tipo terror norte-americano que são os tiroteios em sua primeira temporada, quando Tate matou colegas de escola como os atiradores reais de Columbine. Contudo, a percepção do público sobre a gravidade da situação foi prejudicada pela romantização que os fãs do personagem faziam dele, na época.

A morte de Sally também está embutida de crítica. Os defensores do armamento costumam argumentar que portar armas é uma forma de defesa contra a violência. Donald Trump, por exemplo, chegou a falar que o massacre de novembro de 2015 no Bataclan, em Paris, teria um desfecho diferente se os franceses tivessem acesso mais fácil a armas. Sally tenta recorrer a um revólver quando se vê cercada pelos palhaços. O roteiro do episódio deixa claro como a tentativa é vã. Ela é facilmente desarmada e contida antes que possa se defender.

Mid-Western Assassin” também aborda a exploração do medo por políticos para se elevar. Embora nem todos criem situações de violência para se promover, como Kai, muitos deles abusam do sensacionalismo para causar a impressão de que o eleitorado tem razões para ter medo, para recorrer a um líder que o abrace e coloque no colo para protegê-lo contra os bandidos perigosos.

Ao escrever uma falsa mensagem de suicídio no perfil de Sally no Facebook, ele brinca que as pessoas irão acreditar, porque se está na rede social, é verdade.

O roteiro retrata como uma grande parte do público atual aceita ser alimentado por fakenews compartilhadas na internet, engole números falsos que não corresponde à realidade, e se tornam ovelhas prontinhas para serem pastoreadas por oportunistas com um discurso expressivo, cheio de inverdades. “Você usa medo e a fantasia sobre um tempo que nunca existiu ‘quando as pessoas deixavam as portas de casa destrancadas’,” Sally diz a Kai. A frase é válida para a ele, é válida para políticos reais norte-americanos e é válida para políticos de outras partes do mundo (o que inclui o Brasil).

Paralelamente, intelectuais mais conscientes como Sally não conseguem falar com a massa, principalmente quando essa massa é mais alienada, reacionária e agressiva. E o seriado também aborda isso, nas falas de seu oponente sobre como ela faz parte de uma elite – uma reclamação também que afeta Gary (Chaz Bono), que no terceiro episódio contou sobre como se sente inferiorizado por liberais elitizados que o tratam como caipira. Não é a toa que ele se mostrou o mais ansioso para matar Sally entre os membros do grupo.

Enquanto isso, o discurso sem fundamento de Kai ganha as pessoas pela emoção. É simbólico como uma parte do público do comício demonstra a identificação com ele ao usar cabelos azuis como o líder.

Sem recorrer a sobrenatural, American Horror Story este ano mostra a cada episódio que consegue perturbar simplesmente ao explorar elementos do contexto atual. Qual a necessidade de recorrer a fantasmas, monstros, bruxas, demônios e vampiros quando vemos no nosso dia-a-dia políticos perigosos ganhando popularidade, a forma como esses políticos conseguem apelar para o medo e para o ódio do público, e como a população dá tão facilmente vazão para esse medo e ódio, aceitando ser manipulada? Qual o efeito de abduções quando temos atiradores reais que conseguem matar 58 pessoas em um só ataque?

Por Rafaela Tavares em 12 de October de 2017