Review: Os personagens em transformação em ‘Room Service’, quinto episódio de ‘Hotel’

Quando a câmera nos conduziu pela primeira vez pelo interior do Hotel Cortez, a ótica dominante era a dos hóspedes. A observação sob o ponto de vista de quem explora os cantos desconhecidos de corredores e quartos do estranho prédio se assentava tão confortavelmente em nós durante o período de introdução que por mais que tivéssemos curiosidades sobre o staff, poucos perguntava como era para quem trabalha no local receber e lidar com estranhos exigentes. Cinco semanas mais tarde, “Room Service” (Serviço de quarto) finalmente reverte a perspectiva. E se isso significa nos aprofundarmos na psicologia de Iris (Kathy Bates) e Liz Taylor (Denis O’hare), só pode ser positivo. O quinto episódio abre espaço para que as atuações – antes já interessantes – dos dois intérpretes atingisse o ápice (até o momento) deste ano.

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Por vinte anos, Iris era objetificada pela clientela do hotel. E só não sexualmente. A gerente era tão invisível para a sua empregadora como para as pessoas desagradáveis a quem atendia, o que explica o ânimo como ela recebe as suecas no primeiro episódio. Seu papel era limitado a servir, entregar chaves, ouvir telefonemas de reclamações, providenciar roupa de cama melhor. A dinâmica certamente serviu para anular o significado de sua existência, resumida a vinte anos ao trabalho e à possibilidade de espiar brevemente seu filho Donovan (Matt Bomer).

ADAPTAÇÃO

Você se lembra bem, a última vez que avistamos Iris sua sensação de insignificância foi gatilho para uma tentativa de suicídio. Sua salvação foi ser transformada em vampira. E é nessa fase de transição que a encontramos. Aparentemente a forma como a gerente e ignorada pela Condessa (Lady Gaga) a torna mais uma vez um instrumento – no caso, para a vingança de Donovan e Ramona Royale (Angela Bassett). Porém a personagem de Bates está desorientada demais com sua adaptação à nova forma de vida para se concentrar nos planos de terceiros.

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É necessário que ela trombe em um casal de hóspedes da pior categoria para que Iris conquiste o controle de si mesma. Pessoalmente, estar em um quarto com o Demônio do Vício me assusta menos do que a imaginação de estar no mesmo ambiente que uma dupla de hipsters pedantes, reclamando infinitamente. E no episódio, a essência da parcela mais negativa da geração Y é encarnada por Justin (Darren Criss) e sua igualmente antipática namorada (Jessica Lu). Juntos, eles levam a já debilitada Iris ao limite. Combine o comportamento desses hóspedes com a sede ainda não saciada de sangue fresco e terá como resultado a resposta violenta da gerente. E é um momento de catarse. Ela finalmente se sente livre. Não há um momento em que as sensações da personagem em transformação não é bem transmitida a nossa. Percebemos enquanto ela está febril, sentimos sua falta de autoestima, aspiramos seus temores e desespero e devemos isso ao talento de Kathy Bates.

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ACEITAÇÃO

Não é só Iris que assistimos embarcar em uma espécie de transfiguração. Até o momento, Liz Taylor era uma interessante coadjuvante misteriosa, sempre com uma tirada sarcástica na ponta da língua e bons livros a mão – desde alta literatura com James Joyce até autores revolucionários com Karl Marx e neste episódio Voltaire. No quinto episódio descobrimos como Nicky – seu nome original – abandonou uma vida com a qual não se identificava, atravessou o medo e a discriminação. Ah, anos 1980, época em que homofobia e ignorância em relação às formas de transmissão de Aids eram corriqueiras e perfeitamente aceitáveis, que bom que você passou (e que pena que não levou com você todos preconceituosos idiotas)! Foi exatamente nessa época em que Liz Taylor nasceu, com um dedo de Condessa – no momento em que as bandeiras da filosofia “Born this way” levantadas pela Gaga mais transpareceram na personagem. Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual a passagem foi a cena em que a cantora pareceu mais confortável do papel, com a atuação mais emocional.

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Falando em interpretações, assim como aconteceu com Iris, Denis O’hare tornou ainda mais fácil que nós sentíssemos empatia pela sua personagem. Observamos a primeira vez em que a atual bartender do Cortez se caracterizou como Liz Taylor, aceitando a sensação de quase nudez, passando da vergonha para libertação. E esse misto de sensações é perceptível a cada expressão do ator. A personagem ainda é intrigante. Parece benevolente, mas é amoral em relação a assassinatos. Diz não ter se transformado em vampira, mas não envelheceu em trinta anos.

SUBMISSÃO

Em outro núcleo, Alex (Chloë Sevigny) também experimenta a transição entre a humanidade o vampirismo – e a atriz também faz um trabalho admirável. A médica ainda tem escrúpulos de se alimentar com o banco de sangue do hospital. A falta de sangue fresco também perturba seu raciocínio e percepções sensoriais. A temporada tece mais uma situação semelhante com a história do filme “Fome de Viver” (1983), em que uma profissional da saúde (vivida por Susan Sarandon) passa por cenas parecidas em suas primeiras horas como vampira. No filme, a personagem termina destronando uma rainha dos vampiros (Catherine Deneuve, bastante parecida com a Condessa) e ocupando seu lugar. Podemos esperar o mesmo para Alex? Ainda é cedo para dizer.

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Os primeiros passos dados pela personagem de Sevigny a afastam disso. Para salvar um personagem, ela resolve o infectar com a doença de sangue. Há uma trágica ironia no fato de que a médica se horrorizava com adultos que não protegiam seus filhos de vírus e que se transforma agora em uma espécie de vetor de uma epidemia infantil. A decisão de Alex gera mortes de pais, um massacre de adultos em escola e um exército de vampiros pré-adolescentes. Se me dissessem antes de eu ver o episódio que o roteiro incluiria uma tropa de crianças transformadas, não iria aceitar bem. Mas a execução da ideia foi bastante satisfatória, misturando o sobrenatural com uma situação real de terror americana, que é a violência nas instituições de ensino. E “American Horror Story” é mais perturbadora quando lida com aspectos dos temores não fictícios.

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Assim como ocorreu em “Mommy”, há um paralelo interessante entre as situações vividas por Iris e Alex em “Room Service”. Porém, elas correm para direções opostas. A Iris vampira encontra sua autonomia e identidade além do filho, a Alex recém-transformada se submete à servidão para poder aproveitar a companhia eterna do primogênito por quem é obcecada.

PERSONAGENS

Um dos aspectos que têm me agradado em Hotel é como o vasto elenco de personagens principais tem sido bem aproveitado até o momento, ao contrário do que aconteceu com as duas temporadas anteriores. E é um alívio que o foco da história não se concentre em uma única pessoa, seria um desperdício. Com “Room Service” vemos tramas se desdobrarem. Se no início houve quem apontasse como um dos pecados da temporada o apelo mais para o visual do que para a trama, atualmente vemos a história e a evolução dos protagonistas ganhar mais força. Ao alcançar o quinto episódio, entendemos um pouco melhor Iris e Liz Taylor, é possível perceber a razão para a subtrama da Alex e seu paciente, por exemplo. E ainda houve espaço ainda para tratar de outros dois outros personagens importantes.

É o caso de John (Wes Bentley) que mergulha ainda mais na sensação de confusão e falta de controle sobre os próprios atos. O detetive é demitido, tem sua saúde mental questionada e sua breve amnésia encontro sexual com Sally (Sarah Paulson) nos faz questionar também quem ele realmente é. Quando a fantasma diz ao investigador que ele mente sobre esquecimento e afirma que o que está acontecendo irá se repetir ela se refere à negação dele em relação ao sexo entre os dois ou em relação a outros atos que ele possa estar cometendo? As indicações de que John é o assassino que ele próprio procura escalam. É o momento em que podemos nos perguntar se o roteiro está construído os alicerces da revelação ou nos dando dicas falsas.

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Por fim, somos apresentado a outras aparentes ambiguidades de Elizabeth. Em momentos a personagem de Lady Gaga surge como uma figura gentil, pronta a guiar pessoas perdidas até sua verdadeira identidade como fez com Liz, Ramona e Alex. Ela até parece se emocionar autenticamente ao fazê-lo e diz ter sensibilidade o suficiente para perceber quando crianças serão negligenciadas, buscando salvá-las. Mas em outras horas ela descarta as pessoas por quem interessou como brinquedos velhos, subjuga. A Condessa até chega a ameaçar a vida de uma das crianças para forçar Alex a agir conforme ela deseja. Qual sua verdadeira identidade? Talvez ela seja falsa e manipuladora, talvez tenha simplesmente aceitado a própria duplicidade.

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Quando a personagem se revela para Liz Taylor chega a mencionar a palavra “sombra”, termo usado para um dos conceitos do psicólogo Carl Gustav Jung. Para ele tratava-se da parte mais obscura de nosso eu, aquilo que não aceitamos sobre nossa identidade, o que faz parte de nós mas não reconhecemos. No auge de sua centena de anos, Elizabeth existe há tempo suficiente para abraçar sua sombra e esse autoconhecimento a torna mais poderosa. Liz Taylor e Iris também parecem ter aceitado esse seu lado, assim como Tristan (Finn Wittrock) antes delas. Os outros personagens principais farão o mesmo? Nos basta assistir o resto da temporada e torcer para que a história continue a se desenrolar como tem ocorrido.

Um parêntese: Não é a primeira vez que hipsters incautos se tornam vítimas de vampiros este ano. O lenhador do segundo episódio foi o primeiro exemplo, o que me faz perguntar se os roteiristas têm algum problema com os mais chatos entre chamados millennials. Talvez eles representem a parcela mais intragável dos fãs, aqueles que caçam motivos inexistentes para problematizar cenas e criticar sem conhecimento embasado. Você, leitor (a) certamente já topou com um desses espectadores em alguma seção de comentário ou rede social e não fingirei surpresa se você confessar que fantasiou por alguns minutos tomar a mesma atitude que a Iris, não o culparei. “AHS virou Glee”. “Onde está o terror?” “Essa temporada tem muito sexo, nojinho.” “Está muito violento, não gosto.” Mais fácil sentir empatia pela Iris agora, né? Mas sim, essa é só minha interpretação, Ryan Murphy provavelmente nos ama todos da mesma forma. Fim de parêntese.

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Por Rafaela Tavares em 06 de November de 2015