Uma das maiores forças de “American Horror Story” são seus personagens psicologicamente bem trabalhados e icônicos, enriquecidos por boas atuações. Pense em uma temporada. Provavelmente a primeira imagem formulada por sua mente foi a de um dos protagonistas ou até um dos coadjuvantes. Inspirados em personalidades históricas, épocas ou estereótipos, quase todos eles merecem uma análise aprofundada. E é justamente isso que procuraremos fazer com série de artigos “American Horror Biography“. O objetivo é tentar entender melhor os personagens com atenção dobrada a detalhes de sua biografia ou ações que passam despercebidos quando assistimos pela primeira vez.
Um parêntese: Quando idealizamos a análise de personagens, a intenção era estreá-la com alguém da primeira temporada, mas uma das personagens de “Coven” foi a selecionada no final das contas. Por quê? Porque a julgar pelas piadas e comentários de espectadores ela é uma das criações de Ryan Murphy e Brad Falchuk mal interpretadas pelos fãs e o maior objeto de sexismo. Trataremos desta questão daqui alguns parágrafos.
MADISON MONTGOMERY
Sim, precisamos falar sobre Madison Montgomery. Interpretada por Emma Roberts na primeira participação da atriz em “American Horror Story”, ela é uma das quatro estudantes bruxas da Academia Miss Robichaux para Jovens Excepcionais. Sim, ela é constituída por mais do que frases de efeito e do injusto título de “puta” com que boa parte dos fãs a “coroou”.
POSSÍVEIS ANTEPASSADOS
Tradicionalmente, o clã reunido pela escola de Nova Orleãs é integrado por descendentes dos sobreviventes dos históricos julgamentos de Salem, localizada no atual estado de Massachusetts, onde grande parte acusados (e acusadas, já que mulheres tiveram maior participação numérica na lista de réus) de praticar magia negra terminaram enforcados. Os episódios aconteceram entre 1692 e 1693. Podemos deduzir que uma das fugitivas das execuções é uma antepassada presente na árvore genealógica de Madison, de quem ela herdou poderes mágicos, manifestados inicialmente como telecinese (capacidade de mover objetos com controle mental).
O sobrenome Montgomery pode revelar um outro parentesco incomum. Esse é o nome da família que na década de 1920 construiu a casa onde é ambientada a primeira temporada de American Horror Story, em Los Angeles. Foram atos macabros dos Montgomery envolvendo aborto, morte e suicídio que amaldiçoaram o imóvel, tornando-o mal assombrado. Nora (Lily Rabe) e Charles (Matt Ross) Montgomery eram socialites com um grau de arrogância semelhante ao de Madison.
O patriarca da casa e a personagem de Emma Roberts carregam outro ponto em comum além do nome de família: ambos ressuscitaram um morto depois de costurá-lo a peças de outros corpos. Ele o fez com uso da ciência e possivelmente sangue de bebê vampiro, ela com magia. Como o casal morreu deixando como descendente apenas um bebê monstro-vampiro reconstruído (como quem viu “Hotel” percebeu), Madison não poderia ser uma bisneta, mas não seria implausível que fizesse parte de outro ramo da família de Charles.
Sim, leitor(a), isso é uma especulação e não teve confirmação oficial por enquanto, mas levando em consideração que as temporadas estão conectadas e de que Madison poderia ter qualquer outro sobrenome, os indícios são fortes.
INSPIRAÇÃO E PERSONALIDADE
Madison Montgomery: Minha mãe me fez trabalhar desde que aprendi a falar. Eu odiava. É difícil parar quando você é o único membro da família fazendo dinheiro, sabe?
Fiona Goode: Você não tinha um bom relacionamento com ela?
Madison Montgomery: A última vez que a vi, ela cheirou metade da minha cocaína e depois deixou os tiras me prenderem por isso. Ela é uma vadia egoísta.
Antes de ser uma bruxa, Madison era uma atriz, com carreira iniciada na infância por interesse de sua mãe. E ela é se enquadra no perfil de antigas estrelas mirins que desenvolvem problemas com drogas ou pelo menos um grau de rebeldia em idade adulta. Hollywood produziu muitos deles, principalmente casos em que a mini celebridade foi explorada pelos pais, como a fala da própria Madison indica. Macaulay Culkin e Lindsay Lohan são exemplos emblemáticos de quem conviveu com estrelato cedo demais e sem suporte psicológico adulto por filmes como “Esqueceram de Mim” e “Operação” e terminou marcado por dependência química. Drew Barrymore é outro caso. Inicialmente popular por sua participação em “E.T., O Extraterrestre”, ela enfrentou alcoolismo e vício em cocaína, apesar de ter superado o passado problemático.
O convívio com paparazzi, a exploração familiar, o universo das festas de bastidores e a concorrência por papéis que a projetassem na mídia moldaram a personalidade de Madison. Características psicológicas têm dois lados complementares, como Ying e Yang. Quando se olha as facetas mais agressivas, a personagem é provocativa, ambiciosa, competitiva. Por outro, ela é carente de atenção e usa o poder ou a aparente apatia como formas de contornar a própria vulnerabilidade.
Alcançar o pico da pirâmide hierárquica é essencial para a atriz. Entre as candidatas à Suprema, ela é quem demonstra inicialmente a maior aptidão devido ao avanço em suas habilidades. E é também a mais empenhada em dominar as outras para assumir o poder. Isso inclui estratégias de sabotagem e assassinato. Madison é uma antiheroína que transita no limite com a vilania, tem qualidades moralmente condenáveis, mas também é vítima – às vezes dos próprios atos. Tudo isso como reflexo de sua formação na infância.
GERAÇÃO Y
Madison Montgomery: Eu sou uma millennial. Geração Y. Nasci entre o surgimento da AIDS e o 11 de setembro, mais ou menos. Eles nos chamam de a Geração Global. Nós somos conhecidos por nosso convencimento e narcisismo. Dizem que é assim por sermos a primeira geração que recebe um troféu só por aparecer. Outros acham que é porque a mídia social nos permite publicar algo por cada vez que peidamos ou comemos um sanduíche, exibindo para o mundo. Mas parece que nosso principal traço é uma dormência em relação ao mundo, uma indiferença ao sofrimento.
Madison encarna mais do que as outras personagens o estereótipo da Geração Y, os filhos da modernidade líquida entre os quais o descarte dos vínculos com produtos e outros seres produziu uma sensação de apatia. Para os típicos jovens chamados de millenials, o vazio e a superficialidade são insuportáveis e ao mesmo tempo características essenciais do cotidiano. Esses pós-adolescentes se tornam incapazes de lidar com a profundidade e ao mesmo tempo que sentem-se incomodados pelo vida rasa que constroem. Exibicionistas, loucos por validação e criados para liderar tanto quanto influenciar, eles acumulam admiradores virtuais, se esforçam para ser abelhas rainhas de um grupo e ao mesmo tempo convivem com uma solidão pesada.
Madison enfrenta problemas com uma indiferença simulada ou não. Antes de morrer e ressuscitar – falha ou construção intencional dos roteiristas, ela já agia como se situações traumáticas fossem irrelevantes. Madison é dopada e alvo de um estupro coletivo, mas canaliza o sofrimento com uma rápida execução dos agressores com uso de telecinese e depois age como se a violência fosse um capítulo encerrado. Ela age motivada por um mecanismo de defesa ou uma reação de dar de ombros inerente à sua geração?
Quando ela revive, a sensação de vazio é potencializada. Claramente, ela convive com o vazio e o detesta. Madison descreve o próprio inferno como um vácuo. A questão é se como ela é vaidosa e a típica millennial seu além realmente se resume ao nada? Ou ela mentiu para parecer mais forte e no post mortem reviveu agressões?
Madison está cercada por pessoas, já foi famosa, ofende as únicas amigas que poderia ter e se torna sozinha.
SEXUALIDADE AGRESSIVA?
Madison é tratada como a Geni (já ouviram a música de Chico Buarque, não é?) de American Horror Story. Para começar, intitular mulheres sexualmente ativas de “puta”, “piranha”, “corrimão”, “vadia”, “biscate” é perigoso, embora talvez a maior parte dos fãs não tenha desenvolvido maturidade o suficiente para entender isso (o que é irônico já que há anos assistem um seriado que questiona as agressões físicas e psicológicas à mulher).
“Mas ela é só um personagem fictício”, “Pare de ser chata, são apenas piadas”. Não, a forma como você enxerga personagens fictícios revela seu tratamento às humanas de carne e osso. E piadas influenciam atos sérios. Categorizar pessoas sensuais como “putas” gera dois problemas concretos.
O primeiro é a condenação social. Há séculos mulheres que demonstravam gostar de sexo estava entre as condenadas por bruxaria. Há décadas elas eram internadas como ninfomaníacas (Lembram da Shelley, você que assistiu “Asylum”?). Hoje elas são ainda vítimas de humilhação, da exposição e objetificação.
Por algum motivo, acreditamos que enviar fotos (muitas vezes não solicitadas) de pênis é aceitável, mas a garota que se sujeita a fotografar a própria vagina ou confiou em um namorado o suficiente para permitir que um momento íntimo fosse filmado merece ser exposta e atacada. Se a gravação foi feita sem seu consentimento, ainda acreditam que ela merece a morte social.
Ainda somos uma sociedade anacrônica com acesso a uma rede mundial de comunicação em tempo real, acessada por canais de fibra ótica, mas que ainda é influenciada por religiões de milênios retrasados que pregam que a mulher é uma tentadora de bons homens com institutos pouco controláveis, por isso merece ser punida. Livros sagrados monoteístas ensinam que sexo tem função meramente produtiva, ou seja, transar por prazer se você é mulher, é feio. Não seguimos todas as lições dessa literatura espiritual, ignoramos as melhores partes, mas isso memorizamos bem.
A mulher sexual é coisificada como uma criatura pouco merecedora de respeito. E chegamos ao segundo problema: a cultura do estupro. Para alguns, se ela gosta de transar, se é uma vadia, então “tem que gostar de dar para mim”. Então, temos juízes perguntando a vítimas de violência sexual se elas se esforçaram para fechar as pernas como se isso fosse peça de evidência para o veredito. Temos homens e mulheres na caça de desculpas para duvidar da veracidade de testemunhos de vítimas. Temos predadores sexuais cuspindo bizarrices como “Atrizes pornô ou prostitutas não podem ser estupradas, a culpa é dela”, “As roupas dela era curtas, então a culpa era dela”, “Ela se insinuou, não consegui me controlar, a culpa é dela”.
Calma, o repertório de asneiras nojentas é maior e incluem pensamentos pessoas que até o momento não violentaram ninguém, mas alimentam a cultura de estupro verbalmente:”Se ela age como puta, vai ser tratada como puta”, “Ela é sexy, mereceu”, “Batom vermelho é batom de puta, é um convite a cantadas ou beijos forçados”, “Se ela está sozinha em um bar, se ela está dançando, ela pediu”, “Se ela sorriu, é consentido”, “Quem mandou aceitar bebida, mereceu ser dopada e currada”, “Estuprei porque ela era bonita”, “Vou domar essa potranca”.
Esses são raciocínios comuns ainda entre a nossa geração que muitas vezes surgem em conversas informais e terminam com estupros – como o da Madison. Se os rapazes da fraternidade que a atacaram tivessem o conteúdo de seu cérebro exposto, seria esse tipo de estrume que veríamos.
Então, se você não quer incentivar a cultura de estupro, pare de chamar a Madison ou a Emma Roberts de “vadia”.
Voltemos à análise de personagem. A Madison é desbocada, sexy, não tem problemas em atender a professora vestindo lingerie, sexualmente ativa, mas nem mesmo temos demonstrações de que ela é promíscua. Mesmo se fosse, acabamos de abordar a problemática do slut-shaming, né? Mas nem essa acusação procede. As únicas pessoas com quem ela pratica sexo consentido ao longo de “Coven” são o Kyle (Evan Peters) e a Zoe (Taissa Farmiga). E os atos dela têm mais como combustível sua carência de atenção, necessidade de contornar o vazio e principalmente a competitividade.
Kyle e Zoe demonstravam amor um por outro. Por mais que para o espectador o casal possa parecer insosso, para Madison eles tinham uma forte união da qual ela precisava participar, até para sair da dormência após reviver. Acima disso, Kyle tinha um vínculo com Zoe, quem ela desejava dominar. É a Madison competitiva em relação a uma rival na concorrência pelo cargo de Suprema que fala mais alto do que a Madison sexualmente atraída por um monstro de Frankenstein com as feições do Evan Peters.
Mas como “American Horror Story” insiste em ser um conto com fundo moral, a competitividade de Madison foi a armadilha que levou à sua morte. Será que ela revisitou o inferno dominado pelo vazio?
PRÓXIMO ARTIGO
É, leitores, chega ao fim nossa primeira “American Horror Biography”. Sinta-se à vontade para comentar outros aspectos sobre a Madison ou sugerir o assunto do próximo episódio. Quem deveria ser o personagem principal do próximo artigo?