A extinção da vida sobre a Terra persegue os pesadelos dos homens desde as civilizações antigas. Toda crença religiosa possui uma escatologia – texto sagrado ou lenda que narra os últimos eventos da história mundial, geralmente com teor (muito) destrutivo. Para os cristãos, o fim está codificado no “Apocalipse”, ou “Livro das Revelações”.
Se você é um apóstolo do primeiro século depois de Cristo, com seu repertório de homem da Antiguidade, a quais símbolos recorreria para falar do extermínio da humanidade? Queda de estrelas, grandes terremotos, escurecimento do Sol, águas amargas, pestilência, fome, guerra e morte foram alguns dos elementos escolhidos por João de Patmos, autor do livro bíblico. Desde meados do século 20, esses terrores apocalípticos ganharam ecos num grande medo da humanidade: Guerra Nuclear.
Em 1945, os Estados Unidos buscaram pôr um ponto final – ou dois – na Segunda Guerra Mundial lançando duas bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Só na primeira cidade, a explosão matou 90% da população e dezenas de milhares morreram posteriormente pela exposição à radiação. Pense bem, queda de “estrelas” explosivas seguidas de abalos sísmicos? Guerra? Nuvens que tapam o sol? Águas contaminadas e doença? Fome e morte? Era o próprio Apocalipse numa roupagem moderna.
O medo do fim do mundo por uma Guerra Nuclear assombra norte-americanos desde então, passando pela queda de braço com a União Soviética durante a Guerra Fria e chegando em setembro de 2018, quando Ryan Murphy, Brad Falchuk e os roteiristas da FX escrevem um novo Apocalipse. O mundo mudou desde Hiroshima e Nagasaki, mas para uma nação com um líder instável e inimigos em potencial com grande poder bélico, o fim do mundo por meio da explosão de bombas atômicas continua a ser um fantasma.
Depois de oito anos flertando com o texto bíblico, Ryan Murphy resolveu explorar esse terror norte-americano de um purgatório radioativo barra bíblico. A oitava temporada de American Horror Story fisga os fãs com uma grande promessa: a volta de personagens de “Murder House” e “Coven”, duas das histórias mais populares da antologia. No entanto, a maior parte do primeiro episódio, “The End” (“O Fim”), caminha longe dessa mitologia já conhecida.
BOMBARDEIO
O público é introduzido ao universo de “Apocalypse” com duas sequências que mostram os Estados Unidos no dia de um bombardeio que dizimou o mundo todo e como pessoas privilegiadas se salvaram de serem vaporizadas ou contaminadas. Os diálogos ágeis, cheios de referência a cultura-pop, redes sociais e tendências contemporâneas já vistos no início de “Cult” estão de volta, assim como a predominância do humor negro na ponta da língua dos personagens – uma característica também bem presente em “Coven” e suas frases de efeito.
Inicialmente vemos como Coco (Leslie Grossman), uma socialite, escapou com uma trupe formada por sua assistente, Mallory (Billie Lourd), seu cabeleireiro Mr. Gallant (Evan Peters), e a avó dele, Evie (Joan Collins), simplesmente por ser muito rica e ter uma aeronave reservada para sua salvação. O esposo de Coco, Brock (Billy Eichner), fica para trás e não consegue chegar à tempo. Conhecendo American Horror Story, devemos já saber que é provável que o vejamos novamente. Depois assistimos um casal de jovens (Timothy, interpretado por Kyle Allen, e Emily, vivida por Ashley Santos), quase uma versão inversa de Adão e Eva, receberem uma proteção forçada por terem uma boa genética para sobrevivência.
O primeiro grupo garante o alívio cômico da trama, elemento típico de American Horror Story, que frequentemente se apoia no bizarro, no macabro e no humor nonsense. O segundo é quase uma paródia do romance juvenil tão presente em “Murder House” e “Coven”. É até desconfortável como essas duas partes do elenco destoam em suas habilidades – com a competência do grupo de Coco e a falta de graça de Timothy e Emily. O primeiro grupo é bem interpretado, mas tão ridículo que é difícil ainda criar empatia pelos personagens. O segundo é tão meloso, mas tão insossamente interpretado que é difícil ainda criar empatia pelos personagens. Temos um problema com nossos protagonistas? Mas a quem estamos enganando? Não é exatamente por eles que estamos assistindo, é pelo crossover. Enfim…
POSTO AVANÇADO TRÊS
Todos eles têm um destino: o Posto Avançado Três. Uma mansão subterrânea onde os privilegiados podem fugir do inverno nuclear e da contaminação por radiação. Mas será que podemos chamar essa sobrevivência de privilégio? O local é comandado por Venable (Sarah Paulson), com apoio de Mead (Kathy Bates). As duas clamam representar uma organização chamada de A Cooperativa, que financiou a criação do Posto Avançado. Mas será mesmo que ainda representam? Há indícios de rebeldia entre a relação das duas com a organização. “Esqueça A Cooperativa. É só a gente”.
Venable e Mead poderiam ter saído de um desenho da Disney, no qual certamente seriam vilãs, tanto pela caracterização quanto pelo sadismo explícito – as duas cabeças cobertas por penteados altos e antiquados criam regras desnecessárias, deliciam-se com isso e até brincam com o canibalismo. Elas são obcecadas por regras e punição. A comida, o sexo, as cores das roupas, a saída, tudo é controlado – e as proibições brincam com os medos da parte menos conservadora da população norte-americana atual.
A tecnologia é responsabilizada pelo extermínio, então o resto da civilização vive uma realidade que mistura estéticas Diesel Punk com vitoriana. Não há eletricidade, as pessoas se vestem como no século 19, são divididas em castas representadas por cores de roupas, a comida é racionada, as torturas e execuções são riscos constantes. Poderia ser a premissa de “The Handmaid’s Tale”, mas é uma distopia de American Horror Story e a sua tendência a homenagens, paródias e referências.
O Apocalipse é real? É uma farsa? O que é a Cooperativa? Qual a necessidade dessas normas e desse anacronismo? As perguntas surgem ao longo do episódio, que embora não seja uma introdução extraordinária, entretém e intriga. Há potencial ali. E ele é coroado com o primeiro petisco, o primeiro apelo à nossa nostalgia.
NOSTALGIA
Você assistiu à primeira temporada de American Horror Story? Pense em si mesmo ou mesma em 2011. A primeira sequência mostra a morte dos gêmeos. Lembra-se da trilha-sonora? A canção que tocava enquanto os dois garotos ruivos vandalizavam a casa macabra antes de encontrar uma morte violenta nas garrafas do Infantata era “Tonight You Belong to Me”, uma balada um tanto popular nos Estados Unidos, gravada em 1956 por Patience and Prudence. Ela é delicada, sinistra e acompanha uma das últimas cenas de “The End”.
O recurso é sem-vergonha? É. Foi delicioso ouvir essa música? Foi. A canção é utilizada para introduzir Michael Langdon (Cody Fern). Se o nome soou apenas familiar ou até desconhecido, trata-se de o primeiro personagem de “Murder House” a aparecer em “Apocalypse”. Vem American Horror Story: Fanservice! É para isso que todos os fãs estão assistindo mesmo.
Para quem não assistiu ou não se lembra, primeira temporada foi uma espécie de ” O Bebê de Rosemary” na qual a heroína foi estuprada por um espírito maligno e gerou um bebê Anticristo. Sim, essa criança – com o desenvolvimento físico rápido e avançado) é Michael Langdon, nascido em 2011, com aparência de 30 anos em 2019. Ele surge no Posto Avançado 3 quando a comida está acabando e todos estão surtando supostamente para escolher os aptos a serem levados para um abrigo melhor. Ou para atormentar a todos, afinal, Michael é o diabo ou algo próximo a isso e a última vez que o vimos ele era um bebê risonho que assassinava babás. Antes ele era um feto com cascos que se alimentava de carne crua e cujo parto matou a própria mãe e o irmão gêmeo.
Vemos pouco do tão esperado Anticristo – o suficiente para perceber que ele está caracterizando com uma peruca horrível, mas tem uma beleza padrão de anjo caído popularizado pela arte ocidental. Se a interpretação de Cody Fern for equivalente à sua participação na segunda temporada de “American Crime Story”, teremos um ótimo Michael.
No geral, o primeiro episódio, ainda que não seja nada fora do comum, é divertido e gera curiosidade. A experiência de oito anos com American Horror Story nos diz para não criar grandes expectativas ou levar a temporada a sério demais – pense no próprio “Coven”. Mas há aqui a promessa de bizarrices, sadismo, bons one-liners, atores vivendo múltiplos personagens e muito, muito fanservice. Em que pontos os fantasmas de “Murder House”, as bruxas de “Coven” e a cronologia de “Hotel” (que terminou em 2022, com o mundo ainda firme e forte) se encaixam com a história da oitava temporada são coisas que não sabemos. Contudo, “The End” traz iscas para aguardarmos e descobrir.