Dia da Mulher: As problemáticas de gênero e o empoderamento em American Horror Story

O terror às vezes cai na tentação de retratar suas personagens femininas como donzelas a serem salvas ou até meros objetos sexuais submetidos ao sadismo – e é um produto fictício de qualidade bem mais pobre quando o faz. Felizmente, “American Horror Story” desconstrói esses estereótipos mesmo quando suas mulheres são vítimas. Mais do que isso, o seriado aborda a problemática dos horrores vividos por elas no passado e presente, além de possuir arcos baseados no empoderamento do gênero. Neste “Dia Internacional da Mulher” vale a pena relembrar e analisar algumas das temáticas presentes nas temporadas da série:

AS PROBLEMÁTICAS

Algumas situações pelas quais passam algumas personagens femininas do seriado ilustram o horror de ações machistas e das sociedades com visão sexista. Os produtores do seriado levantam bandeiras a favor de minorias (no sentido de grupos oprimidos, não numa análise quântica) e o feminismo é uma dessas defesas.

DICOTOMIA SANTA X VADIA

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Moira O’Hara incorpora fisicamente a dicotomia entre as imagens do que seria uma mulher decente e aquela taxada de vadia. É a primeira crítica de Ryan Murphy e Brad Falchuk ao sexismo. Aos olhos das mulheres, a fantasma se apresenta como uma senhora de meia idade, com vestes modestas e modos retraídos interpretada por Frances Conroy. Já os homens a visualizam como uma jovem hipersexual com a aparência da Alexandra Breckenridge, com trajes confeccionados como que para a saciação de um fetiche, sempre pronta a provocá-los como a realização de uma fantasia.

Não se engane. A representação dual de Moira não se resume a funcionar como um agrado visual oferecido para quem sente atração por mulheres, muito menos a ser uma simples assombração com conceito de transformação. Ela retrata o problema da mentalidade que divide a população feminina entre santa e vadia. A morte dela é resultado disso. Um homem com quem ela teve uma relação sexual se considerou no direito de estuprá-la pelo encontro anterior e pelo fato de ela ter uma aparência sensual. A esposa dele considerou que tinha o direito de matá-la ao confundir o ataque como uma sedução. Para eles, quando rotulam Moira como “vadia”, ela merece o tratamento.

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No pós morte, encarnar essa alternância é para ela como uma espécie de purgação, como uma metáfora para o inferno que é ser classificada como uma coisa ou outra, quando se tem natureza mais complexa, quando se sofre com o maniqueísmo que qualifica seres humanos de acordo com sua sexualidade ou aparência.

A temática é revisitada na segunda temporada com a dinâmica entre Arden (James Cromwell) e Mary Eunice (Lily Rabe). Ele, um ex-médico nazista têm uma visão limitada que separa mulheres entre puras e vagabundas, sem tolerância para as pessoas enquadradas por si mesmo no segundo grupo. Às mulheres que ousam ser sexuais ele reserva tratamentos como a mutilação, o que para quem faz parte de um movimento de culto à perfeição física como o nazismo é o maior rebaixamento possível. É assim que Hans Gruper (seu nome real) trata Shelley (Chlöe Sevigny) e Elsa (Jessica Lange).

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Já Mary Eunice, com sua virgindade e inocência é vista por ele como um objeto de uma admiração doentia. Ele a objetifica por suas qualidades, mas prefere não consumar seu desejo por ela, para não maculá-la, utilizando substitutas que despreza. Não é coincidência que essa deturpação misógina faz parte da essência de um personagem que integrou o nazismo. Para o movimento, as mulheres idealmente deveriam ser mães, manter-se em ambiente doméstico, “boas arianas”. Shelley e Elsa, figuras sexualmente fortes, representam para ele uma afronta a esse ideal. Esse apreço pela dicotomia significa a aniquilação ao próprio Arden. Ele entra em colapso quando defrontado com uma versão sexual de Mary Eunice e se suicida. Murphy raramente é sutil, por isso não seria forçado imaginar que o final deste vilão simboliza a necessidade de destruição da dicotomia.

O PAPEL DE PAREDE AMARELO

No conto “O papel de parede amarelo” da escritora Charlotte Perkins Gilman, uma mulher diagnosticada com uma leve tendência a histeria é isolada em um quarto, numa tentativa de seu marido a protegê-la de sua própria doença. Trata-se de um retrato da forma opressora como a saúde física e mental feminina era encarada no século 19. No local, a protagonista não vê nada além do papel de parede amarelo que forra o quarto e essa visão provoca uma psicose. Moira narra essa história a Vivien (Connie Britton) em “American Horror Story” pelos paralelos entre as duas heroínas.

A classificação injusta de mulheres como insanas e seu encarceramento é um terror recorrente no seriado. Já na primeira temporada, Vivien é alvo da tática ao ser internada pelo próprio marido. Ele prefere vê-la institucionalizada do que acreditar na verdade proferida pela esposa: a de que ela foi estuprada e de que eles vivem em um ambiente mal assombrado. A história de Vivien aborda casos menos fantasiosos em que mulheres são caladas por denunciarem realidades difíceis de serem aceitadas. Caso Ben a tivesse ouvido, talvez a família não teria um final trágico.

O mesmo drama se repete com três personagens femininas. Shelley é internada em um hospício por assumir seu apetite sexual, algo considerado doentio em uma mulher na década de 1960. Ao narrar sua origem, ela se revolta com como homens podem gostar de sexo, mas pessoas de seu gênero são taxadas como ninfomaníacas se demonstrarem apreço pela liberdade sexual.

A internação como forma de deter uma mulher com comportamento indesejado é uma estratégia utilizada para afastar Lana (Sarah Paulson) da verdade. A irmã Jude convence a própria companheira da jornalista a interná-la em Briarcliff. Assim, sua curiosidade é amordaçada. Qual o sexismo nisso? O motivo pelo qual a sociedade da época considerava Lana como digna de tratamento é o fato de ela praticar um padrão de sexualidade considerado desviado para uma mulher. A personagem de Sarah Paulson é lésbica e para os sexistas mulheres devem se relacionar apenas com homens. Caso contrário, são doentes e precisam ser curadas. A ironia de tudo isso? Quando a própria Jude começa a desvendar as monstruosidades praticadas em Briarcliff, ela é vítima de um artifício parecido, pois a sociedade em que vive aceita como uma normalidade a internação como forma de se calar uma mulher.

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O EMPODERAMENTO

Não é só de infernos pessoais pautados pelo sexismo que “American Horror Story” se movimenta no seu retrato de personagens mulheres. Vários arcos de evolução da série se baseiam na questão de empoderamento.

SORORIDADE COMO SALVAÇÃO

Ao longo dos séculos, mulheres foram as maiores vítimas das fogueiras utilizadas para punir quem recebeu a acusação de bruxaria. Algumas sequer tentavam praticar alguma forma de magia, e sim tinham aparência, sexualidade, crenças ou comportamento considerado impróprios para figuras femininas pela sociedade cristã e conservadora. O clã de Coven foi formado pelas sobreviventes dos julgamentos de Salem, que massacraram pessoas por bruxaria (a maioria, obviamente, mulheres).

No seriado, as bruxas em questão são realmente praticantes de magia que se tornam um grupo para se proteger. E elas, predominantemente mulheres, são mais fortes quando se aproximam. É a união das bruxas sufragistas que possibilita a elas derrotar o Assassino do Machado de Nova Orleãs e aprisioná-lo. O problema é que na atualidade há fissuras entre as praticantes de magia, motivada pela disputa por poder provocada pelo comportamento da Suprema, Fiona, inspirando as bruxas mais jovens a competir entre si.

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Somente quando ameaças externas e lições pessoais convencem a nova geração de personagens a criar vínculos entre si e se proteger, elas sobrevivem. Isso só acontece quando as alunas deixam de lado o comportamento de estudantes maldosas de filmes adolescentes norte-americanos, quando Queenie (Gabourey Sidibe) a descendente de Tituba – a primeira acusada a praticar bruxaria em Salem, que no seriado havia sido uma negra, mas que na teoria de alguns historiadores poderia ser uma nativa norte-americana – se sente aceita, quando a nova Suprema, Cordelia, trata as outras bruxas como irmãs.

IDENTIDADE DE GÊNERO

As mulheres trans também têm uma representatividade em “American Horror Story”. Isso se tornou mais visível com a introdução de Liz Taylor em “Hotel”. Denis O’Hare dá vida a essa personagem que aparenta ser secundária nos primeiros episódios, mas que até a conclusão assume o posto de heroína da trama e é uma das protagonistas mais bem desenvolvidas do seriado.

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Apesar da origem traumática, quando foi alvo da incompreensão e ofensa de amigos homofóbicos nos anos 1980, Liz passa por um processo de empoderamento, evoluindo de uma pessoa infeliz ao estar presa em um padrão de comportamento que não representa a sua essência até finalmente entender a própria identidade – e conseguir que seu filho a aceite como mãe. Independentemente de fatores biológicos, Liz Taylor é uma mulher e o roteiro teve um cuidado elogiável a utilizar pronomes femininos a se referir a ela como tal – pena que nem todos os espectadores respeitem isso.

A personagem poderia ter sido vivida por uma atriz trans e não por um ator cis? Poderia. Porém, na construção da personagem, ela não passou por tratamentos hormonais ou cirúrgicos para se sentir completa em sua identidade. Por outro lado, temos representatividade trans também no elenco, com a participação da atriz e modelo Erika Ervin em “Freak Show”. O mais interessante é que ela interpreta Amazon Eve, uma mulher cis, demonstrando que mulheres trans podem ser escaladas para papéis que não seja apenas de mulheres trans.

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FORTALECIMENTO FEMININO

No princípio da história, vítimas da sociedade sexista e dos próprios valores, Lana e Jude são duas personagem com a maior evolução em termos de empoderamento. Lana inicialmente é uma jornalista ambiciosa que topa riscos não tão éticos para conseguir informações e publicar reportagens que provem que ao contrário do que seus colegas pensam, ela é capaz de cobrir muito mais do que assuntos considerados “femininos”. A repórter é aprisionada como doente mental por ser homossexual, por deixar sua curiosidade ultrapassar os limites considerados seguros por sua antagonista e por não reconhecer o perigo.

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Em um primeiro momento, ela aceita um homem como seu salvador, submetendo-se ao diagnóstico dado por ele e até a tratamentos degradantes de conversão sexual receitados por ele. Esse homem se torna seu carrasco, a abusa sexualmente, a força a aceitar um título de mãe (simbólica e fisicamente) e ameaça sua vida.

Jude também aceita que sua personalidade seja moldada por aquilo que as figuras masculinas de sua vida considerassem convenientes. Ela o faz movida pela culpa por seu comportamento antes de abraçar a religiosidade e por querer agradar o homem a quem ama. Numa sociedade patriarcal, para se impor como autoridade, Jude precisa se endurecer. Porém, nem essa sociedade patriarcal e nem o homem a quem ela ama a protege de ser esmagada por forças malignas.

Tanto uma como outra só consegue redenção por conta própria, quando consegue se libertar do sexismo, da imposição masculina e dos limites impostos por si mesma. Lana se fortalece, consegue escapar de dois algozes homens, cria uma carreira sólida. Apesar disso, não encarna nenhuma faceta da dicotomia de santa ou vadia. Ela é retratada simplesmente como um ser humano comum, com direito a ter ainda falhas de caráter como ser egoísta ou ambiciosa demais em alguns momentos. “Eu sou forte, mas não sou docinho“, afirma Lana em um dos últimos episódios.

E o que salva Jude? Você pode dizer que foi a bondade de Kit (Evan Peters), um homem. Em partes sim, e também não há problema nenhum na proximidade, amizade ou cooperação entre um homem e uma mulher. Essa ajuda mútua não diminui o empoderamento de Jude ou o caráter de Kit. Não podemos esquecer que foi a mudança que ela própria operou em seu comportamento ao buscar a justiça e a verdade que permitiu que Kit a enxergasse como um membro de sua família.

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Além disso, a antiga freira só encontra paz interna quando rejeita as imposições do sexismo e a forma como ela mesma se submetia ao julgamento do homem a quem amava. “Nunca deixe um homem dizer quem você é ou fazer com que você se sinta menor do que ele“, ela aconselha a filha de Kit.

OBSERVAÇÃO IMPORTANTE

Se você é espectador de “American Horror Story” e não deixa de chamar Madison (Emma Roberts), Shelley e Condessa (Lady Gaga), ou mulheres de seu convívio, de vadias por não suportar a sexualidade ativa delas, não respeita a identidade de gênero de mulheres trans, resume o papel de mulheres à maternidade (ou rebaixa mulheres que optaram por ser mãe, que também é uma liberdade quando escolhida), cala mulheres como se elas não tivessem direito a opinião ou curiosidade, você não é nada melhor do que Arden, Thredson e não entendeu a mensagem do seriado.

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O texto acima foi produzido pela equipe do site American Horror Story Brasil. Reproduções em outras páginas são bem-vindas desde que acompanhadas por crédito.

Por Rafaela Tavares em 08 de March de 2016