Os clichês e os massacres sem serra elétrica de “Camp Redwood”, 1° episódio de “1984”

Se slasher tivesse 10 mandamentos, o primeiro seria “não transarás”. Filmes desse subgênero do terror, povoados por psicopatas que matam como se fosse uma força da natureza, também têm uma super população de vítimas formadas por jovens hipersexuais. Uma cena de sexo é um bom prenúncio para um massacre. É só pensar nos clássicos do terror B lançados nos anos 1970 e 1980. Ser sexualmente ativo é uma prática punida com violência, como se os vilões representassem uma espécie de moralidade intolerante ao prazer.

Uma homenagem ao cinema slasher e seus clichês, “American Horror Story: 1984” se inicia com uma cena de ménage à trois em um acampamento para jovens. Fãs do estilo reconhecem em poucos segundos: o ato terminará com sangue. Ruídos no plano de fundo confirmam. O dormitório do acampamento em poucos segundos é tingido de vermelho. Os cadáveres jovens se espalham pelo chão enquanto o assassino com figurino bastante característico se distancia. Foram nove mortos naquela noite.

Após a sequência inicial, o primeiro episódio da nona temporada do seriado se desdobra como uma sucessão de reproduções do subgênero – estilo de baixo orçamento, personagens que são arquétipos, diálogos de gosto duvidoso, jumpscare e sangue. As referências a filmes como os das franquias “O Massacre da Serra Elétrica”, “Halloween” e “Sexta-feira 13” saltam no rosto do espectador.

ANOS 80
O subtítulo “1984” se refere ao ano de ambientação da trama – ao menos, superficialmente, pois até o momento não se percebe nenhuma característica em comum com a distopia de mesmo nome escrita por George Orwell. A década faz parte do período de ouro do slasher junto com 1970, era em que foram estabelecidos os clichês nos quais a temporada se baseia. A produção e a direção é um ponto positivo visível da temporada no sentido de recriar a época. O cenário, figurino, cabelo e até o gestual dos atores parecem ter saído realmente de um filme dos anos 1980, o que é intensificado pela trilha sonora.

As cenas são acompanhadas hora por canções que poderiam tocar nas rádios oitentistas, como “`Photograph” de Def Leppard, “Private Eyes” de Daryl Hall & John Oates e “Cruel Summer” de Bananarama, hora por uma música incidental cheia de sintetizadores que poderia ter saído de um filme do John Carpenter.

Se sexo é punido com morte em slashers da época, castidade é premiada com sobrevivência. Mocinhas virginais geralmente se tornam a “final girl”, a única garota a sair com vida da matança, outro clichê do formato. A mais forte candidata ao título é Brooke (interpretada por Emma Roberts, competente em uma atuação que se diferencia das personagens megeras que Ryan Murphy geralmente reserva para ela).

A personagem e a interpretação se aproximam bem mais das jovens doces e puras dos filmes dos anos 1980, que permanecem com vida até a aparição dos créditos finais apesar de realizarem uma sequência de atos arriscados, para não dizer estúpidos, antes de criar um certo tipo de esperteza diante de assassinos. Brooke é atacada por um assassino, mas sai sozinha ao ar livre no mesmo local onde foi perseguida; em uma cena fala sobre o perigo de janelas abertas em locais de massacre, no outro aparece dormindo debaixo de… uma janela aberta. Essa é nossa adorável Brooke.

Ela, e outros quatro jovens que frequentam a mesma aula de aeróbica (algo também muito anos 1980 junto com as roupas de ginástica confeccionadas com spandex) resolvem fugir de Los Angeles e buscam refúgio em um acampamento de verão, onde atuarão como instrutores. Temos aqui, com o cenário, uma referência ao primeiro filme da série “Sexta-feira 13”, de 1980.

O elenco inclui Billie Lourd (mais expressiva nesse episódio do que em outras temporadas), Cody Fern (que curiosamente após morrer atropelado em uma temporada nessa causa um atropelamento), Gus Kenworthy e DeRon Horton, interpretando mais arquétipos do subgênero. Antes de chegar ao destino que planejaram, eles passam por um posto de gasolina e topam na estrada com um carneiro misterioso e machucado, o que remete a “O Massacre da Serra Elétrica”.

MANÍACOS
A motivação para Brooke viajar com semi desconhecidos amigáveis é um trauma. Ela quase é assassinada por um maníaco apelidado de Perseguidor da Noite. O agressor da mocinha é, na verdade, um assassino em série real, chamado Richard Ramirez, que matou pelo menos 13 pessoas e era associado a um interesse por Satanismo. O mesmo assassino já apareceu em “American Horror Story“, na quinta temporada, interpretado, então, por Anthony Ruivivar, como um dos convidados para um jantar de Halloween de James March (Evan Peters). Na nova versão ele é vivido por Zach Villa e é bem mais caricato. A troca de atores indica algo sobre “1984”? Talvez, sim, talvez, não.

O acampamento para onde os personagens fogem da violência de Los Angeles é o Camp Redwood, o mesmo na sequência inicial de massacre. Quem não somou um mais um, toma conhecimento da coincidência graças a um diálogo em torno de fogueira narrado pela enfermeira Rita (Angelica Ross, de “Pose”). O acampamento foi reaberto e é administrado por uma religiosa fervorosa chamada Margaret (Leslie Grossman, também bastante competente). A personagem é também a sobrevivente ao massacre do início do episódio, uma “final girl” dentro do próprio universo da história.

O assassino, descobrimos, é apelidado de “Mr Jingles” e vivido por John Carroll Lynch – ator perfeito para interpretar maníacos. Só em “American Horror Story” esse é seu terceiro serial killer. Ele deu vida ao palhaço Twisty de “Freak Show” e encarnou John Wayne Gacy em “Hotel”, um palhaço assassino real. O apelido “Jingles”, que significa “tinidos”, precisa de pouca explicação quando se escuta os tinidos do molho de chaves que o mesmo carrega consigo.

Jingles estava trancafiado em um hospício, após ser condenado pelas nove mortes e a tentativa de assassinato de Margaret, porém foge para começar um novo massacre. A história remete a Michael Myers, o vilão da saga “Halloween”, que foge de um sanatório no primeiro filme e na sequência mais recente, de 2018. Ele, assim como Ramirez, persegue Brooke, mas – outro clichê do slasher – ninguém acredita nela quando ela informa a todos que Jingles voltou.

TEMPORADA
Primeira temporada dedicada totalmente ao estilo slasher em “American Horror Story” (e segundo trabalho de Ryan Murphy a fazer isso, junto com “Scream Queens”, também protagonizada por Emma Roberts, “1984” até o momento se prova um bom entretenimento. O roteiro traz mais falas que apelam para o ridículo e o “shade” do que abre espaço para grandes monólogos como os de outras temporadas. Mas até isso não é necessariamente algo negativo, já que se encaixa na proposta de slasher – um slasher do Murphyverse, com direito a uma sexualização muito maior dos personagens masculinos do que dos femininos, ao contrário do que acontece nos filmes do subgênero.

A temporada pode cair como um choque para fãs da série pela ausência de Sarah Paulson e Evan Peters, que pela primeira vez não integram o elenco, e pelo tom mais cômico, mas a diferenciação, se bem conduzida, pode ter o efeito de uma retomada de fôlego.

O episódio inicial responde a todas expectativas de quem está familiarizado com slasher, a ponto de beirar uma previsibilidade divertida. Se o apego aos clichês irá se manter, ou se a temporada ousará a subvertê-los para surpreender também é outra questão que ainda não é possível descobrir. Até o final do primeiro episódio, “1984” foi eficiente em causar risadas e sustos ao seguir fórmulas esperadas, sem ainda apresentar um material muito memorável por si só.

Por Rafaela Tavares em 21 de September de 2019