Review: As homenagens cinematográficas em ‘Flicker’, sétimo episódio de ‘Hotel’

Se “American Horror Story” fosse um organismo vivo, seu sistema cardiovascular bombearia uma mistura líquida de filmes de celuloide. As temporadas reproduzem passagens do cinema, às vezes escancaradamente como uma espécie de pastiche glorificando a indústria audiovisual. Cenas, iluminações, ângulos, trilhas sonoras, temáticas, personagens – é difícil um episódio do seriado que não contenha pelo menos uma referência a alguma obra ou diretor.

Em “Flicker”, a relação entre o seriado e a arte dos longa metragens atinge um grau mais íntimo que anterior. O título do sétimo episódio, inclusive, é uma palavra inglesa que funciona como sinônimo informal para… cinema. E não poderia ser diferente, nele lendas do universo dos filmes antigos são fundidas à trama, principalmente à origem de alguém que é alicerce da temporada. Sim, há um equilíbrio entre a participação dos protagonistas na história da temporada, mas é inegável que a Condessa (Lady Gaga) é o elo de todas as subtramas e personagens e desta vez ela é o eixo do episódio.

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Antes de ser uma vampira predadora que comanda os bastidores do Hotel Cortez, Elizabeth era uma jovem da sonhadora do Brooklyn que migrou para Hollywood com um desejo: se tornar uma estrela. Para ela – e eu não duvidaria que também para os cinéfilos responsáveis pelo roteiro – o cinema é a verdadeira forma de arte americana, um meio para a imortalização. E ela ansiava por se eternizar, admirava quem fosse capaz de se reinventar. A transfiguração de sua psique e de seu metabolismo ocorreu um pouco depois de ela começar a fazer figuração em filmes mudos. Elizabeth não alcançou a fama como atriz, mas foi transformada pelas mãos de um ator, o italiano Rudolph Valentino. Alguém chegou a sentir saudades de Finn Wittrock? É, não deu tempo.

PERSONAGENS REAIS

Mal o Tristan morreu, o intérprete retorna em um outro papel e ele encarnada nada menos que o primeiro amor da Condessa. Alguns podem considerar confuso ou forçado fato de um ator ter dois papéis na mesma temporada, mas o artifício é também uma referência ao cinema. Alguns dos antigos filmes escalavam a mesma atriz para o papel da amante perdida de um vampiro e para uma mulher de outra geração que atrai seu fascínio pela semelhança física com o primeiro amor. Foi o que aconteceu com a Condessa. E confesso que a combinação da maquiagem de Valentino com as nuances distintas da atuação me fizeram esquecer o Tristan temporariamente.

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Melhor que isso, Finn dá vida não a uma figura fictícia inventada na mente de Ryan Murphy, a série introduz à história um nome verídico, mesclando ficção e realidade. O verdadeiro Valentino foi um ícone do cinema dos anos 1920, conhecido por participação em filmes como “The Sheik” (1921), “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse” (1921) e “Sangue e Areia” (1922). Era tão amado por sua beleza incomum e aura romântica que quando morreu em decorrência de uma úlcera aos 31 anos, em 1926, causou histeria em mulheres, há inclusive rumores de suicídios de fãs desoladas. O ator era um queridinho das revistas de fofoca junto com suas esposas, como a figurinista Natacha Rambova (também presente na série como Alexandra Daddario, formando um menage à trois com o marido e Elizabeth).

Como ocorreu com outras lendas cinematográficas, Valentino é rodeado por mitos e especulações. Casado com belas mulheres, ele tem sua sexualidade questionada (o que é referido, no episódio). Seu túmulo no cemitério Hollywood Forever era visitada por uma misteriosa mulher de preto que depositava uma rosa na frente da sepultura (em “Flicker”, a Condessa assume essa identidade). É claro que American Horror Story incorpora essa atmosfera de mistério. Elizabeth tenta se atirar da janela como as supostas mulheres que desejaram morrer ao receber a notícia de que Valentino não estava mais vivo, e ela assume a identidade da dama de luto que assombra seu túmulo. Aqui, o ator não morreu realmente, mas forjou a própria morte quando foi transformado em vampiro pelo famoso diretor de cinema mudo F.W. Murnau, que produziu clássicos do expressionismo como “Nosferatu” (1922), inspirado na história de Drácula.

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PONTAS AMARRADAS

Claro, isso é mais uma desculpa para homenagear o cinema – a cena em que o cineasta persegue Valentino pelo trem reproduz perfeitamente a cinematografia de um filme mudo de terror. Também é uma demonstração de como a temporada está bem amarrada até agora. Elementos sutilmente introduzidos desde o primeiro episódio são retomados, completando círculos perfeitos com “Flicker”. Murnau está indiretamente ligado à origem da Condessa e seu filme “Nosferatu” foi o pano de fundo da cena introdutória da personagem. A exibição da película tem como cenário o cemitério Hollywood Forever, onde está enterrado Rudolph Valentino. Elizabeth foi mostrada pela primeira vez em uma sequência sem falas e no passado foi atriz de filme mudo.

Na tal cena introdutória, ela e seu amante caçam pessoas com quem possam se distrair sexualmente e na juventude, ela foi um banquete de um casal de “deuses” com o apetite parecido. Ela se sente atraída por morenos, altos, misteriosos, de queixos marcantes como seu primeiro amor, Valentino. A personagem quase se jogada de uma janela parecida com a aquela pela qual Sally (Sarah Paulson) parecia encantada até ser arremessada por Iris e morrer (teria Sally – viciada em sentimentos alheios – captado a tristeza vivida naquela janela?). Uma loira de sadismo voyeur é insinuada ser a esposa de Mr. March (Evan Peters), e temos a confirmação de que a personagem de Lady Gaga é a tal mulher. A Condessa arquiteta um plano de se casar e se apropriar da riqueza de Will Drake (Cheyenne Jackson), como fez com o primeiro esposo. Elizabeth citou para Donovan como as vezes em que teve o coração destroçado influenciou sua formação pessoal e vemos agora como isso ocorreu. Sua frieza surgiu com a falsa morte de Valentino, foi intensificada pela decepção de ser enganada pelos dois amantes e piorada pela impressão de ter sido abandonada pela segunda vez.

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Impressão errônea, Valentino e Natacha não largaram Elizabeth sozinha na estação de trem por razões calculadas, os dois foram emparedados, vítimas do enciumado James. Quase oitenta anos mais tarde são libertados acidentalmente pelos operários que cuidam das reformas de Will Drake. Sem sugar sangue fresco, o casal fica envelhecido, mas nada que novas vítimas não resolvam.

GANCHOS E DÚVIDAS

Fora o desenvolvimento da origem de Condessa, “Flicker” tem apenas uma trama paralela, o que em termos em narrativa foi uma ótima escolha, já que isso possibilita que as duas histórias sejam contadas de maneira eficiente. Os holofotes secundários do episódio vão para John Lowe (Wes Bentley) dando mais passos em direção à sua deterioração psicológica. Mais perturbado do que antes, ele tenta dar continuidade às investigações das quais foi afastado tomando uma decisão desesperada: se enfurnando no hospital psiquiátrico onde estaria internado um suspeito dos assassinatos dos Dez Mandamentos. Na cela do possível monstro ele contra uma cúmplice inusitada do verdadeiro culpado, Wren (Jessica Belkin) uma das crianças vampiras raptadas e adotadas por Elizabeth, que se torna um guia trágico do detetive.

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A participação de John no episódio serve para estabelecer um gancho com o próximo episódio, que revelará a autoria e a razão dos crimes. Vamos admitir, depois dos diálogos das cenas mais recentes só seria mais óbvio que o responsável pelos homicídios é o próprio investigado se setas em pisca-pisca vermelho apontassem para o personagem. Mas há também uma tênue hipótese de plot twist, o que é o suficiente para causar exasperação durante a semana de hiato. Curiosamente, o desenrolar de um mistério de outra temporada (a primeira) foi prolongado também até o oitavo episódio, a identidade do Rubberman.

Até a continuação da história de “Hotel”, vale a pena admirar as qualidades da direção de “Flicker”, nas mãos do maravilhoso Michael Goi. A fotografia do episódio foi sublime, com suas interessantes homenagens ao cinema mudo, com a sensação de sufoco nas cenas do John e com as belas escolhas de ângulos. As cenas de flashback confirmam a vocação de “American Horror Story” em recriar ambientes de época. Os figurinos, comportamentos, maquiagens e cenários foram fiéis aos anos 1920. A direção também arrancou boas atuações dos atores. Vale destacar nesse sentido o diálogo perturbador dos personagens de Wes e Jessica (a interpretação da garota foi uma ótima surpresa), o magnetismo sexual de Alexandra e Finn, além do jantar absurdamente divertido dos dois monstros afáveis da temporada, os ex-esposos March e Condessa, com desempenhos sólidos de Evan e Gaga.

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Chegamos à metade da temporada. Só podemos ter certeza de sua qualidade com a conclusão, mas até agora quem tinha dúvidas sobre a capacidade de “Hotel” desenvolver personagens e histórias tem motivos para alívio. As tramas estão bem encaminhadas, dúvidas plantadas receberam respostas ao mesmo tempo que foram semeadas outras questões capazes de nos manter fisgados até o décimo terceiro episódio.

Por Rafaela Tavares em 20 de November de 2015