Review de ‘Great Again’, a season finale de ‘Cult’

Se as histórias das seitas lideradas por pessoas desequilibradas têm algo em comum é o fim trágico. A mentalidade do chefe se deteriora de forma progressiva até que ele impulsione o grupo para um suicídio coletivo literal ou figurativo. Os casos citados em “Cult” foram assim. Jim Jones e Marshall Applewhite exigiram o auto-aniquilamento físico de seus seguidores. David Koresh conduziu os membros de seu Ramo Davidiano a um enfrentamento com agentes da lei, conflito que resultou em mortes de quase todos. Os planos macabros de Charles Manson encaminhou seu grupo ao fim, com todos encarcerados.

A realidade histórica das seitas era um indício de que o grupo liderado por Kai (que enlouquecia um pouco a cada dia) poderia ter um desses fins: a morte ou a prisão. Ryan Murphy optou para dar ao culto um pouco das duas opções.

Apesar do título, “Great Again” (Grande Novamente) começa com o culto em decadência. A seita original foi desmantelada. Kai (Evan Peters) está preso. O título parece fazer referência a três situações. A primeira e talvez mais óbvia é uma brincadeira com o slogan do presidente norte-americano Donald Trump, que prometia desde a campanha eleitoral tornar a América “grande novamente”. O nome do último episódio também fala da ambição de Kai. Ele quer reconstruir seu grupo e utiliza seu carisma mágico para conquistar seguidores dentro da prisão – incluindo um jovem parecido consigo mesmo que possa ser sacrificado para uma fuga envolvendo uma mutilação facial na vítima a lá Hannibal Lecter trocando de lugar com um guarda em “O Silêncio dos Inocentes”.

EIXO

É interessante que Kai tenha um ponto em semelhança com Hannibal, um vilão que embora não tenha criado uma seita em sua história é um dos personagens malignos da ficção mais cultuados por fãs. Seja “Cult” uma temporada boa ou não, Kai entra também para o rol dos grandes antagonistas, pelo menos no que diz respeito a American Horror Story. Ele foi o personagem melhor desenvolvido (talvez o único). Kai é o eixo da história. O personagem causa repulsa com seu discurso de macho branco supremacista cheio de ódio, mas é ele quem prende a atenção do espectador em “Cult”. Evan Peters teve no sétimo ano da série o melhor papel de sua carreira, ao mesmo tempo em que sua atuação magnética é o ponto alto da temporada (repito, talvez um dos poucos aspectos realmente excelentes em “Cult”).

Mas quem se torna grande no universo da temporada é alguém que sempre se sentiu frágil: Ally (Sarah Paulson). Ela havia se comprometido a ser informante do FBI e consegue destruir o culto de Kai manipulando as fraquezas do líder. Ally reconstrói sua vida familiar, se fortalece, se alia a Beverly (Adina Porter, junto com Sarah se tornando uma tradicional sobrevivente no seriado), ganha admiradores até se eleger senadora (roubando os sonhos de um certo vilão frustrado). Ela também consegue se armar contra Kai, conquistar a confiança de uma guarda que aparentava ser vítima da hipnose dele e conspira para morte de seu algoz em uma filmagem televisionada ao vivo.

CONDUÇÃO

Ver Ally se reerguer tem seu quê de satisfatório? Tem. Mas o desenvolvimento dela no final das contas é ainda mais forçado e pior conduzido que qualquer aspecto da história de Kai (ou de Lana Winters, para compará-la com outra heroína de Sarah Paulson que evoluiu de injustiçada para rainha da vingança).

Assim como Lana não sai intocada pelo lado sombrio de sua trajetória, Ally não termina pura. Ela comprova a teoria de Bebe (Frances Conroy) de que mulheres atormentadas por homens em algum momento reagem. Porém, enquanto Lana se torna egoísta e escreve fragmentos ligeiramente falsos por interesse próprio, Ally se transforma em participante de um culto de odiadoras de homens dispostas a exterminá-los. Até seu diálogo com o filho que ela ama soa como um mau presságio para a vida adulta da criança.

A cena final de “Cult” é incômoda. Ela é um testamento à noção de que em uma era de ódio como a atual mesmo quem tem reivindicações justas (como as mulheres oprimidas por uma reação misógina aos pequenos ganhos conquistados pelo gênero) podem ser induzidas ao extremismo e até à monstruosidade. Ou, pelo menos, podemos esperar que os produtores tenham tido essa intenção. Afinal, o grupo Scum do qual Ally passa a fazer parte não representa a melhor face do feminismo e até associar o movimento atual como um todo a ele é mesmo um desserviço às mulheres que lutam pelo seu direito. Ally pode aparentar ter sido empoderada, mas a realidade de um mundo pós-Trump e pós-Kai a corrompeu.

Se essa foi a intenção, um final negativo combina com a época de ódio, massacres recordes e popularidade de líderes que flertam, namoram e parecem prontos para se casar com o autoritarismo.

VEREDITO

É difícil falar sobre o roteiro de “Cult”. O seu charme são os diálogos ácidos, satíricos e cheios de referência a fenômenos da cultura pop e da cibercultura atuais. O seu ponto negativo são as conveniências e a previsibilidade. Temos mais uma vez personagens mal aproveitados, reduzidos a ferramentas narrativas (Samuels, Harrison, Ivy e até Winter), cujas personalidades oscilam conforme a necessidade do episódio. Temos algumas explicações para detalhes que poderiam ser furos (por exemplo, a facilidade de Kai se livrar da polícia se deve a ter um detetive no grupo, mas as autoridades não foram tão cegas que não perceberam que havia algo estranho em Samuels e o investigaram). Até o pior e aparentemente mais desconectado episódio, no final das contas teve uma razão de ser (Valerie e sua ideologia foi o combustível para a transformação de Ally e sua aliança a Beverly e à guarda que a salvaram). Porém, a execução às vezes deixa a desejar. O próprio sétimo episódio teria um impacto melhor se não fosse tão rocambolesco e não tivesse uma atriz tão fraca como a Lena Dunham em um papel tão essencial.

É verossímil que um jovem frustado, que se sinta humilhado pela vida, conquiste seguidores mesmo sendo desequilibrado? É possível que alguém sem preparo, sem soluções concretas chegue ao poder apelando para emoções, para valores conservadores e para a demonização de minorias? Sim! Quantas seitas reais mostradas na série não foram formadas por pessoas vulneráveis que cercaram um líder de ideais esvaziados, insano, porém carismáticos? Hitler não conseguiu fortalecer o partido nazista explorando as fraquezas de uma nação em crise, gritando e emocionando, apontando para grupos políticos e étnico-religiosos como bodes expiatórios sem nem ter um fundamento racional para as afirmações? Trump não tem admiradores? Mas mesmo Kai (o melhor aspecto da temporada) poderia ter demonstrações melhores sobre seu carisma (as únicas realmente perfeitas foram as do terceiro e sexto episódios).

O que dizer sobre os outros personagens menos explorados? O que dizer da previsibilidade da história da heroína vencendo o vilão? O que falar do enfraquecimento da sátira que atirava para todos os lados e do crescimento do tom didático, bidimensional e panfletário como a temporada abordou o sexismo? A opressão, o silenciamento feminino e a misoginia são terrores americanos? São. Mas também são assuntos que merecem uma melhor abordagem do que a mostrada na temporada.

A questão da mulher é de suma importância em qualquer período em uma sociedade que ainda não alcançou a igualdade de gênero, principalmente quando um presidente de uma potência faz apologia ao ato de ” agarrar as mulheres pela xoxota”, em que a cultura de estupro ainda é forte, e políticos se articulam para retirar direitos da mulher sobre seu próprio corpo. Contudo, esse não é o único aspecto preocupante da era Trump. Mas na segunda metade, “Cult” basicamente se resumiu a uma guerra de homens contra mulheres. A crítica social esqueceu outros grupos afetados pelo fortalecimento do discurso e políticas de ódio: os negros, os transgênero, os imigrantes. Limitar a história de uma temporada que recria as tensões de uma era à oposição de machistas e feministas radicais de uma versão fictícia das seguidoras de Valerie Solanas é reducionismo. 

“Cult” foi ruim? Não foi. Teve ótimos episódios, temáticas importantes, um tom satírico certeiro na primeira parte da trama, um vilão marcante lindamente interpretado. Porém, também teve momentos fracos, situações mal aproveitadas, outros personagens mornos, um afastamento da sátira de boa qualidade, e uma história que decaiu. Foi boa, mas com um potencial para ser muito melhor.

Por Rafaela Tavares

Por Gabriel Fernandes em 17 de November de 2017

"Tu fui, ego eris". Arquiteto e urbanista, ilustrador independente, colecionador de mangás e grande apreciador do gênero terror em filmes, séries e jogos.