Review de ‘Winter of our discontent’, 8° episódio de ‘Cult’

Tramas do terror moderno, noticiário político atual, cultura pop, memes e sites populares são algumas das influências visuais ou verbais para a sétima temporada de American Horror Story. O título do oitavo episódio traz uma referência mais clássica. A expressão “Winter of our discontent” (Inverno do nosso descontentamento) forma o primeiro verso da peça “Ricardo III” de William Shakespeare. O protagonista dessa história começa o primeiro ato do texto tramando contra o próprio irmão. O que essa inspiração sugere sobre o episódio?

Além significar “inverno” na língua inglesa, Winter é o nome da personagem de Billie Lourd, irmã mais nova do vilão Kai (Evan Peters) no seriado. Junto com as outras mulheres que integram a seita, ela está insatisfeita com o isolamento e as micro-humilhações impostas a todas elas pelo líder do grupo. As três são afastadas, obrigadas a cozinhar para alimentar um exército masculino e a ouvir ofensas deles. O título indica que Winter dará início à tão esperada conspiração contra Kai?

Quando pressionada por Beverly (Adina Porter) a eliminar Kai, sob argumentos de que ser irmã do líder não é uma garantia de imunidade contra a violência dele, Winter hesita. Ela argumenta que apesar dos métodos questionáveis, o irmão tem boas intenções.

Winter relembra um acontecimento que ela acredita ter estimulado Kai a iniciar sua revolução. Em 2015, antes de se ocuparem com uma seita de palhaços assassinos e jogos políticos, os dois irmãos tinham passatempos mais “comuns” – se é que podemos chamá-los assim. Eles jogavam iscas para religiosos fanáticos e seus opositores na Deep Web. As brincadeiras resultaram em um convite.

JULGAMENTO
Na época, Winter e Kai foram atraídos para uma Casa de Julgamento, uma espécie de atração de terror, só que com a temática religiosa. É como se os dois entrassem em um cenário que mistura “Jogos Mortais” com “Se7en”, com interpretações contemporâneas da Bíblia Sagrada.

Eles foram obrigados a caminhar por cômodos de um imóvel, enquanto teriam que fazer escolhas. A cada etapa do caminho, eles encontraram “pecadores” castigados pelos seus “vícios”: uma mulher que teria abortado, mutilada para sangrar até morrer, um viciado em drogas preso a uma cama espetado por seringas que despejam substâncias tóxicas em suas veias e um homem preso a uma cadeira para ser atingido por estacas em seu dorso.

Por incrível que pareça, Casas de Julgamento existem nos Estados Unidos (e até no Brasil) e é possível agendar uma visita até uma delas (Não estou mentindo, poxa, pesquise no Google). Um misto de casas de terror dos parques de diversão com teatro, esses lugares são criados como ferramenta evangélica utilizada para chocar o visitante, geralmente contra práticas consideradas negativas pela fé cristã, como aborto, homossexualidade e paganismo.

As pessoas passam por uma sequência de cenários com apresentações teatrais elaboradas para despertar repulsa, promover crenças conservadoras e converter infiéis. Críticos das Casas de Julgamento acusam seus criadores de demonizar minorias e oferecem informações equivocadas sobre saúde. Seus defensores dizem que elas possibilitam uma caminhada espiritual de recuperação.

Na realidade, as Casas de Julgamento utilizam atores sem os ferir (esperamos que sempre, não é?). É claro que a versão mostrada em American Horror Story teria um aspecto macabro. O administrador da casa visitada por Winter e Kai, Pastor Charles (Rick Springfield), sequestrava pessoas e estava disposto a matá-las para criar as cenas grotescas. Sequer elas eram praticantes dos pecados atribuídos a elas, a jovem passou por uma consulta de planejamento familiar, um dos homens se internou em uma clínica de reabilitação, o outro era voluntário em uma clínica para tratamento de AIDS.

Vale destacar que o terror provocado pela Casa de Julgamento é um dos melhores elementos do episódio. O Kai edição 2015 se revoltou contra o ato, salvou Winter e as outras vítimas do religioso fundamentalista e o matou. Esse acontecimento tornou mais firme o vínculo entre Winter e Kai. Na visão dela, matar o Pastor Charles provocou uma mudança em Kai e despertou nele uma decisão de salvar as pessoas (ainda que utilizando métodos homicidas para isso).

DETERIORAÇÃO
A questão é: a visita à Casa de Julgamento realmente foi o gatilho para o Kai enlouquecer ou o evento apenas causou impacto na Winter, enquanto o irmão dela há tempos já passava por um processo de deterioração mental? Seja qual for a origem da loucura de Kai, após ser eleito e conseguir coagir os outros conselheiros municipais a aprovarem seus projetos, ele assume comportamentos cada vez mais bizarros. De repente, a seita política ganha contornos religiosos muito estranhos.

Além de criar um exército que lembram uma versão da era Trump para as tropas paramilitares nazistas, Kai resolve que sua revolução precisa de um messias. Ele decide que Winter deve conceber a criança. Como ela não se sente confortável com a ideia de uma relação incestuosa, ele sugere um ritual de ménage à trois, em que a irmã será penetrada pelo detetive Samuels (Colton Haynes) que será penetrado por Kai. O líder da seita cria uma cerimônia metade inspirada por “Handmaid’s Tale” e metade pelo que poderia ser a esquete de algum programa de comédia, com a balada dos anos 90 “I Swear” da boyband All-4-One como trilha sonora oficial. Apesar de se declarar feminista, Winter é tão hipnotizada por Kai que inicialmente aceita se tornar seu “receptáculo”, mas como até ela tem um limite, ela interrompe a cerimônia. Isso significa o início de uma revolta? Ainda não.

A irmã do líder recebe e aceita uma penitência: espalhar lixo pela rua (porque, como Trump, Kai não acredita em aquecimento global), usando um macacão alaranjado como o das presidiárias norte-americanas e com um gorro de gnomo na cabeça. Winter encontra Samuels e questiona a submissão dele ao líder da seita.

No passado, Kai foi flagrado pelo detetive traficando drogas. Em vez de prendê-lo, Samuels começou a cobrar uma participação (vantajosa) dos lucros com as vendas. Na época, Samuels era um policial que colecionava objetos nazistas e transava com mulheres, precisando ser violento com elas para se excitar. Com uma metáfora para sexo homossexual como uma recarga de bateria, Kai conseguiu convencer o machista Samuels, na prática, que se ele transasse com outros homens se tornaria mais poderoso, sem que isso significasse que ele era gay. Foi assim que detetive se tornou passivo a Kai, psicológica e fisicamente.

Após um desentendimento, Samuels tenta estuprar Winter para conceber o messias e é morto por ela. Fim da participação breve e discreta de Colton Haynes em “Cult“. Adeus, personagem mais subutilizado da temporada. Será o começo da conspiração de Winter para tomar o poder de Kai?

RICARDO III
Mais uma vez, ainda não! Winter simplesmente culpa Beverly pela morte de Samuels e coloca o irmão contra a personagem de Adina Porter. A referência a Ricardo III certamente não é sobre Winter. É mais possível que ela seja sobre Kai. Assim como ele, o protagonista da peça é o vilão da própria história e capaz de tudo pelo poder. Ricardo III causa a morte de familiares e de qualquer um que possa ameaçar sua ascensão ao trono.

Ele é convincente em seus discursos e manipula até algumas pessoas que conhecem a sua crueldade a segui-lo – e, em alguns momentos faz até com que o público o admire por sua inteligência. Soa familiar? Ao que tudo indica (e destaco mais uma vez, “ao que tudo indica”), Kai é o Ricardo III de “Cult” e parabéns a William Shakespeare e Ryan Murphy por criarem  personagens capazes de despertarem nosso ódio e nos fascinar, ao mesmo tempo.

Em “Winter of our discontent“, Kai até mesmo promove a morte de um irmão, acusando-o de traição, como acontece na peça shakespeariana. Convencido de que o psiquiatra Vincent desejava interná-lo, o líder da seita o executa como um traidor. Não seria de se surpreender que o discurso sobre criar um messias seja uma manipulação para fazer Winter se desesperar e matar outros membros da seita, assim como também é possível que Kai simplesmente esteja enlouquecendo.

ALLY
O líder da seita parece ser o Ricardo III da temporada, mas será ele o Ricardo III do oitavo episódio de Cult? Surpresa, espectadores, outra personagem que merece a coroa da manipulação desta vez. Ally Mayfair-Richards (Sarah Paulson). Aposto que vocês acharam que não a veriam mais.

Depois de um período de internação, Ally reaparece. Há uma mudança nela, como Kai bem nota, ao ser convidado por ela para um lanche. Ally está mais forte. A sucessão de traumas, a certeza de não ter mais nada a perder, o desespero por recuperar o próprio filho exorcizou as fobias que a debilitavam.

Em um primeiro momento, Ally enfrenta Vincent e arranca dele algumas informações, além da promessa de apoio. Depois, ela se reúne com Kai, o ofende, serve lanches para ele, exige ter o filho de volta, informa o líder da seita sobre a intenção de Vincent de interná-lo, faz com que ele esqueça os riscos de ser envenenado e o convence a recebê-la como a mais nova integrante da seita. Ally simplesmente vendeu Vincent para Kai? Os dois agiram em acordo? Vincent se sacrificou para se redimir e por não ser capaz de viver quando todos descobrirem que seu irmão é louco e que roubou as fichas de seus pacientes para atormentá-los?

Não sei, mas ver Ally enfrentar Kai é satisfatório. Ter a impressão de que ela o dominou no jogo de manipulação é prazeroso. Ver o rosto de Sarah Paulson ser revelado por trás da máscara da palhaça Pentagram, para o espanto de Ivy (Alison Pill), é orgásmico. Foi exaustivo vê-la como uma heroína frágil e paralisada pelo medo por tanto tempo. Se algum personagem viveu um “interno de descontentamento” e o converteu em “glorioso verão”, no oitavo episódio, esse alguém é Ally. Se alguém aprendeu a manipular como Ricardo III, esse alguém é ela. Ally tem mesmo vantagens sobre Kai? Ela é quem vai derrubá-lo? Alguém vai derrubá-lo? Só o tempo e os últimos episódios dirão.

Por Rafaela Tavares em 26 de October de 2017